domingo, fevereiro 03, 2013

Too much or not too much?



António Costa tem estado a ser crucificado um pouco por todo o lado, jornais, tv, blogues e facebook por não ter feito o que todos nós quereríamos fazer se fôssemos candidatos a líderes do Partido Socialista. Muitos dos argumentos são de peso e de tudo o que li destaco os do Daniel Oliveira ( a quem estou ligado por laços de amizade e forte simpatia) no Expresso, que, com a contundência habitual, diz que António Costa ( que neste vídeo é muito eloquente na forma como explica a sua posição)  tem medo do risco, tem medo de perder e que isso é decisivo porque o próximo primeiro ministro terá de enfrentar poderes muitíssimo mais agressivos do que os que Costa alguma vez conheceu como ministro, autarca ou dirigente socialista.   

É bom perceber que o que me parece sempre mais importante em situações como estas é que independentemente da forma veemente, da determinação argumentativa e do brilhantismo de raciocínio  a que o Daniel nos habituou, a sua produção discursiva coabita com aquilo que eu chamaria  uma doença de opinião e que alastra pandemicamente num território comunicacional cada vez mais afastado de uma possibilidade de reflectir ponderadamente sobre as situações. E que parte de uma circunstância muito importante que é a nossa desresponsabilização enquanto produtores de retórica (a que eu chamo muitas vezes tralha ideológica). Como aquilo que escrevemos são apenas frases no facebook, nos blogues ou nos jornais (os próprios jornais já têm tanto material online que já fazem parte desse mesmo território aparentemente infinito) e produzem mais sentimentos, sensações e afecções de momento, ninguém está muito preocupado em perceber se aquilo que veicula é razoável fora não só desse dispositivo infernal de produção de (perda de) sentido, como da própria efemeridade do momento da partilha das mensagens. Somos uma espécie de snnipers em loop, que produzimos enunciados-ilha que apenas têm de produzir razoabilidade no exacto momento da argumentação. 

O grande problema é que perdemos a capacidade de analisar cada um pela expressão de si mesmo, do seu comportamento político. Analisamos a práxis política de António Costa pela bitola que analisamos a de António José Seguro, analisamos António José Seguro pela bitola de Passos Coelho ( um dos argumentos preferidos que andam por aí - é mesmo isso, andam por aí, sem pai, nem mãe, é o senso comum, voilá! - é dizer que ele é um clone de Passos Coelho sem percebermos que se isso acontece é porque a nossa percepção da realidade ajustou a compreensão da actuação de Seguro à de Coelho), como antes ajustáramos Sócrates a Cavaco. E tudo isso se faz quer dentro quer fora das famílias politicas principais. Reza esta merdiúnflica historiografia política que Guterres venceu Cavaco porque opôs o diálogo ao autoritarismo cavaquista, assim como Sócrates venceu porque com a sua juventude e determinação suplantou a indefinição guterrista, assim como para a vitória de Passos Coelho também terá sido alguma importância o facto de ele ser um jovem que aparentemente não tinha os tiques autoritários de Sócrates. Da mesma forma que Seguro está condenado ao fracasso porque é demasiado parecido com Passos Coelho. É justo, para analisarnos clones nada mais adequado do que a clonagem argumentativa.

Há no entanto uma regra de ouro da produção de um juízo a que deveríamos estar mais atentos: quando duas coisas nos parecem iguais será prudente começarmos a questionar a forma como as pensamos porque é bem possível que estejamos a ter um vício de percepção. Ora como nós somos muito a forma como percepcionamos as coisas, todos estes vícios de pensamento e de juízo nos fazem muito sentido e começam até a ser irrebatíveis. Isso é válido tanto para situações extraordinariamente complexas como esta crise-pretexto em que vivemos, como para as indecisões do António Costa. O problema que deveríamos acautelar é o de se ao não promovermos outra percepção da realidade não estaremos a condenarmo-nos a viver na mesma conjuntura que hoje nos parece tão desprezível e destruidora da nossa esperança nas possibilidades do mundo em que vivemos.

Dizer que António Costa tem medo do risco e tem medo de perder parece fazer todo o sentido numa semana em que todos queriam que ele se assumisse como candidato a líder ( e porque é que todos queriam que ele se assumisse como candidato a líder? Seria interessante tentar perceber isso) e ele apenas se assumiu como potencial candidato a líder. Independentemente de fazer sentido há uma coisa indesmentível: tem uma carga viral fortíssima e adequa-se como uma luva a uma esquerda que se entrega mais facilmente ao canibalismo e à autofagia política do que à produção de um discurso que defenda a comunidade das politicas de direita. 

Que fique muito claro que eu não estou a defender António Costa (de quem não só não subscrevo a crítica a Seguro de que este fez mal em impedir a realização de uma comissão parlamentar para legitimar um determinado corte orçamental, como ainda não vi nada de clarividente sobre a forma do PS voltar a ser um partido com ambições de congregar a esquerda), apenas estou a identificar nas criticas que lhe fizeram a persistência de uma retórica política que me parece ser ela mesma o principal obstáculo a que em conjunto possamos encontrar as melhores soluções para a nossa vida.

Seria talvez importante pensarmos numa coisa: se for mesmo verdade que António Costa tem medo do risco e tem medo de perder e se isso for uma sua marca política que já o traz desde a altura em que, enquanto candidato a uma autarquia dos arredores de Lisboa fez um determinado percurso dos subúrbios de burro para mostrar que assim chegava mais depressa do que com um Ferrari, então porque é que toda a gente queria que ele fosse candidato a líder? Quer dizer que toda a gente quer um líder da oposição que seja  um tipo, para usar a metáfora viril do Daniel Oliveira, que não tem tomates? É que se um tipo que não tem tomates quisesse ser candidato a líder do PS, ainda poderíamos compreender que nos revoltássemos contra ele, mas assim, faz algum sentido a crucificação? Não será too much?

Provavelmente a resposta é mesmo outra: porque, e vamos aceitar hipoteticamente que sim, que ele tem medo de arriscar  e de tomar riscos, todos nós sabemos da nossa vida de todos os dias, aquela em que sem heroísmo nos deixamos arrastar dia após dia, que ter medo do risco e ter medo de perder não são condições para não arriscarmos. Nunca me esqueço de um episódio que me contaram há muitos anos, trabalhava eu num bairro considerado difícil: Daniel Sampaio visitou uma escola de um bairro problemático onde o tráfico de droga e a prostituição era uma constante e numa determinada turma perguntou aos alunos, quem é que tem medo de vir a ser um toxicodependente? Ninguém respondeu senão um miúdo que foi logo crucificado pelos outros: a mãe é prostituta, o pai está preso, o tio vende droga, diziam os outros. Daniel Sampaio terá insistido: "-Está bem, mas quem de vocês tem menos probalidades de vir a ser um toxicodependente? Ele que tem medo e que prepara a sua vida para poder ser outra coisa ou vocês aí, cheios de bravata ?"

No caso do António Costa, a ser verdade que ele tem medo de arriscar ou de perder, não é menos verdade que esse medo não o parece ter inibido a ser candidato autárquico, autarca, ministro, e por isso não há nenhuma razão, a não ser o estarmos desgostosos por ele não fazer como nós acharíamos que ele deveria fazer, para pensarmos que ele não conseguirá ser candidato a primeiro-ministro ou a líder do PS quando achar que está em condições de o fazer. Pelo contrário. Se escutarmos as declarações de Costa neste vídeo elas evidenciam uma clareza política e uma determinação que exprimem a singularidade da sua actuação política. Muito mais aberta a valores humanistas e de integração do outro do que a retóricas fulminantes colonizadas por outras retóricas (aparentemente) não políticas. 

Podemos dizer que mesmo assim não é disso que o país no momento actual precisa. E eu estarei totalmente de acordo. O que o país precisa é que cada um seja capaz de pensar pela própria cabeça e de, individual e colectivamente, concedermos ao outro a possibilidade de nos iluminar com a sua diferença. Ou seja, precisamos de menos tomates (uns podres de maduros para atirar a alguns personagens do nosso descontentamento não faziam mal a ninguém, confesso) e de sermos mais abertos à singularidade de cada um. Por mais longe que vamos nesse domínio nunca será too much.


















1 comentário:

disse...

saúdo o regresso, largos meses depois, com um texto que, vindo de ti, me surpreendeu. e nisso a ressalvar diferenças fortes de opinião mas aqui a concordar, veementemente, com o que escreves. abraço amigo Quim!