quarta-feira, dezembro 11, 2013

A minha vida com gatos


Quando era miúdo não gostava de gatos. Ou melhor, não lhes dava muita atenção. Como gostava de cães incorporei essa antipatia canina pelos felinos. É verdade também que houve um acontecimento que me fez pensar que os gatos eram criaturas muito irritantes. A certa altura, na Rua Domingos Machado, em Mafra, havia um baldio resultante de um prédio em construção. Lá acumulavam-se gatos. Gatos e lixo. O meu irmão mais velho gostava muito de animais e não era como eu, não colocava de um lado os bons, os que mordiam, e do outro os maus, os que miavam. Eu também gostava muito de animais, cães, patos, galinhas, pombos, pintainhos, íamos à fira da Malveira e trazíamos criação de patinhos e pintainhos que depois tratávamos entre nós. Mas estou a desviar-me da história: no baldio em frente nasceu uma ninhada. Que era preciso alimentar. O bom do meu irmão foi buscar leite e um prato e lá alimentou aquela gataria toda, de a a z. Nós gozávamos com ele. É mesmo piegas, mariquinhas pé de salsa. O certo é que um casal de velhotes que morava em frente via a cena e comovia-se. Ia-se comovendo. Quando a comoção já não dava para conter entre quatro paredes chamou o meu irmão. Deu-lhe vinte escudos e um saco inteiro de caramelos espanhóis. Nãos sei se sabem duas coisas: naquela altura, estaríamos no final de sessenta, cinco escudos era uma pequena fortuna. Os nossos pais davam-nos de semanada cinco tostões que davam para cinco pastilhas pirata. Os rebuçados de coleção com os cromos da bola eram a meio tostão. Além disso os caramelos espanhóis estavam no top ten das nossas predilecções mandibulares. Para resumir: nós, os valentões, os fortitanas, os isto e aquilo, andámos uma semana de cu para o ar (e olho na janela dos velhotes) a chamar bichaninho, bichaninho, anda cá. Ao fim de uma semana, com a moral completamente em baixo desistimos, claro. Aos outros não sei que lhes perdi o rasto mas a mim ficou-me por muitos e muitos anos, uma irritação canina por gatos. Não lhes ladrava por educação mas cá dentro, interiormente, rosnava. Já era muito tardia a hora  quando comecei a gostar deles. Primeiro o curso de teatro da Comuna onde o João Mota exaltava as qualidades dos felinos e nos punha a fazer o gato de Grotowski fez cair as hostilidades. E depois aproximei-me ideologicamente deles enquanto me afastava um pouco da ideia de fidelidade e subserviência dos canídeos. Os gatos eram independentes, vadios, amavam a liberdade e se calçavam umas botas tornavam-se nuns aventureiros e nuns espertalhaços. Além disso, aquela ideia de que eles é que nos escolhem, dava-me a mim, um poço de insegurança, uma grande sensação de bem estar e conforto. Ver um gato aproximar-se de mim, como a Ella, a vadia da Ella, fazer questão de se sentar ao meu colo, colocar-se em cima do computador, andar para trás e para a frente para me mostrar que a casa é dela, é algo que me dá muito prazer. Tanto que até tive de vir aqui fazer-lhe esta pequena serenata. E lembrar-me da frase anarquista que tantas vezes me arrancou um sorriso: gosto de gatos porque não há gatos-polícia.


2 comentários:

je suis...noir disse...

Gosto de o ver de volta! (Como os gatos afinal que voltam:))

JPN disse...

vamos a ver se desta é que fico...